top of page

Smith, Sen, Desigualdade e o Mundo Atual: Entrevista Com Professor Flavio Comim

Entrevista com o Professor Favio Comim*


Qual a principal característica da obra de Adam Smith e do liberalismo pautado nele? Flavio Comim: A principal característica das principais obras de Adam Smith, onde incluo aqui o seu 'Tratado da Astronomia', 'Teoria dos Sentimentos Morais' e a 'Riqueza das Nações' é o uso do método científico Newtoniano que compreendia uma fundamentação no 'sentido comum' e no uso de evidencias empíricas. Em particular, ele acreditava que filósofos, assim como cientistas, construíam modelos e a partir desses explicavam de maneira que despertasse curiosidade e surpresa uma variedade de fenômenos naturais. No que diz respeito ao seu liberalismo, acho que existe muito mal entendido sobre isso. O Professor Eduardo Giannetti, no seu livro 'Beliefs in Action' explica esses desenganos de leitura na obra do Smith. Veja que quando falamos de 'liberalismo' podemos falar de coisas diferentes. No sentido de liberdade de mercados, direito de propriedade, investimento na educação, sim, Smith pode ser dito um liberal. Mas não na ausência de regras, leis, normas e de um papel atuante do estado. Pode-se dizer que só se pode entender A Riqueza das Nações quem também leu Teoria dos Sentimentos Morais? FM: O problema da leitura convencional da Riqueza das Nações (RN) é que o pessoal somente lê o primeiro livro e fica com uma visão incompleta que seria completamente modificada se chegassem até o final do mesmo livro. O problema foi a construção de um estereótipo da RN baseada nas suas passagens mais famosas, como a da 'mão-invisível' e da 'benevolência do padeiro, açougueiro, etc', que apresentam o Smith como se ele fosse um 'neoliberal', como definido na chamada 'Reunião de Walter Lippmann' de Paris de 1938. Mas ele nunca foi isso e sim um liberal no sentido clássico, no mesmo sentido que John Stuart Mill é um liberal clássico. Esse estereótipo de Smith é muito difícil de ser mantido depois da leitura da Teoria dos Sentimentos Morais (TSM) onde ele mostra o lugar que os nossos sentimentos morais egoístas têm em relação aos demais. O egoísmo é um sentimento moral. Mas temos outros, como o amor, a compaixão, entre outros. Você considera um erro quando utilizam Adam Smith para defender que imposto é roubo? FM: Totalmente. A visão descontextualizada de partes da RN é produzida menos por uma motivação acadêmica e mais por uma motivação ideológica, de necessidade de embasamento de uma visão auto-suficiente da economia, na qual a atividade econômica passa a ser vista como um fim nela mesma. Adam Smith, pelo contrario, entendia que 'ser amado' e 'ser feliz' são os objetivos da vida humana e que a produção de bens e de riqueza é uma atividade chave de nossas vidas mas não a única de valor. Pergunto, pois, as críticas dele aos impostos na época em que viveu, assim como no Brasil, ajudavam a concentrar renda, esse ponto muito criticado por Smith, qual a importância desse ponto na obra de Smith? FM: A ideia de imposto progressivo é uma invenção do século XX, mais precisamente do entre grandes guerras. Não que não se falasse antes na tributação progressiva, mas nenhum país tinha impostos progressivos de modo consistente. O recente livro 'Capital e Ideologia' do Piketty trata isso nas suas primeiras partes. O que concentrava renda na época de Smith não eram os impostos, pois a capacidade fiscal dos estados era baixa, mas sim as diferentes obrigações que existiam entre a população e os sistemas de pagamento à igreja e à monarquia, que muitas vezes existiam para financiar guerras. Os impostos comerciais entre estados eram de fato barreiras poderosas, mas no mais das vezes eram parte de estrategias do colonialismo europeu. Adam Smith é antes de mais um filósofo moral, um sociólogo ou um economista? FM: A beleza do trabalho de Smith é que ele é tudo 'junto e misturado', como de fato deveria ser. A fundamentação das acoes humanas é eminentemente filosófica e eu diria também psicológica para ele. A TSM é cheia de nuances psicológicas que não ficam devendo muito para Daniel Kahneman e outros psicólogos/economistas contemporâneos. Ao mesmo tempo, o conceito chave da TSM, a 'simpatia' e o seu derivado 'o expectador imparcial' são um instrumento poderoso para entender sociologicamente como sociedades tem a capacidade de estruturarem suas instituições a partir de noções como a de imparcialidade. Nesse sentido, o trabalho de John Rawls sobre a 'justiça' segue uma tradição smithiana no sentido de fundamentar uma visão social a partir de um pressuposto de imparcialidade (que era o que Sergio Buarque de Holanda queria mostrar com o seu conceito de 'homem cordial'). Quão atual é a obra de Adam Smith e é possível dizer que teve sua obra deturpada pela escola austríaca? FM: Vivemos dias de muita parcialidade, de fake-news, de muita deturpação da verdade. Vivemos dias contrários aos pregados por Smith quando introduziu o conceito de 'expectador imparcial'. Nesse sentido, o trabalho de Smith é muito atual não como elemento descritivo da realidade, mas como remédio. Precisamos entender as complexidades dos sentimentos morais das pessoas e como elas impactam nas instituições que escolhemos ter. E onde o crescimento econômico entra nisso. Smith continua sendo atual como no século XVIII. Muitos deturparam a obra de Smith, parcialmente por não reconhecerem nela a influencia de Newton e do pensamento escocês da época, como o de David Hume. No entanto, os que fizeram um honesto erro acadêmico foram poucos. A maioria apenas sofreu de heurística confirmatória, indo a obra de Smith, principalmente a RN, para extrair partes descontextualizadas que confirmam o que as pessoas já queriam dizer. Se estivéssemos tratando de analises contemporâneas poderíamos dizer que o Smith foi usado como a 'cereja' do bolo de muita gente, não apenas os austríacos (como na expressão em ingles, 'cherry picking'). Qual a influência de Smith no pensamento e nas obras de Amartya Sen? FM: De acordo com o próprio Sen, Smith é uma das principais referencias para ele. Eu me aventuro em dizer, no entanto, que não é o Smith da RN, mas o da TSM que aparece mais no trabalho dele. E isso não é porque o Sen fez o prefacio de uma das ultimas edições da TSM publicadas ha alguns anos atrás. Mas sim porque utiliza vários conceitos em seu trabalho como os de 'imparcialidade aberta', 'pluralidade de sentimentos morais', entre outros, que fazem referencia direta a TSM. De fato, podemos dizer que a obsessão de longo prazo de Sen com o pluralismo, que podemos ver na sua critica ao teorema da impossibilidade de Arrow lá em 1970 ou em artigos mais recentes como o 'Maximização e o ato da escolha' ou mesmo na sua revisão do 'Escolha Coletiva' de 1970 em 2017, é totalmente smithiana. Sen usa também Smith para criticar a natureza transcendental do trabalho de Rawls sobre a justiça. Ou seja, a influencia de Smith nos trabalhos de Sen tem muita materialidade.

O que Sen trouxe de novidade para o liberalismo? FM: O liberalismo de Sen é o liberalismo dos clássicos; do pluralismo de sentimentos morais, da busca da organização social como pré-condição da liberdade dos indivíduos e da não discriminação entre os indivíduos. O liberalismo de Sen se preocupa com a pobreza e a desigualdade como grandes entraves à liberdade humano. O liberalismo de Sen não tem nenhuma característica do que poderíamos considerar o 'liberalismo tupiniquim', que é estado-fóbico, despreocupado com a desigualdade e a pobreza e acredita (ou diz que acredita) na mão-invisível como meio de geração de progresso social. Nesse sentido, não trouxe nenhuma novidade per se, a não ser de resgatar autores como Smith, Mill e Condorcet dentro de uma perspectiva de escolha social. Qual a contribuição do Sen para os estudos sobre desigualdade? FM: A contribuição começa com o seus artigos de axiomatização da pobreza e desigualdade, na década de 1970, que podem ser vistos também no seu livro 'Poverty and Famines' de 1981. No início dessa década ele formula no artigo 'Equality of What?' a sua teoria das capacitações, o que o leva a melhor formulação de desigualdade como diferenças em capacitações básicas. Suas publicações de 1985, 'Commodities and Capabilities' and 'Well Being, Agency and Freedom' sintetizam muito do veremos ele publicar depois sobre desigualdade como o 'Desigualdade Re-examinada'. O trabalho de Sen vai ficando mais sofisticado com o tempo, trazendo insights da Escolha Social para a analise de desigualdade. Acho que o 'Rationality and Freedom', que é uma coletânea pós premio Nobel resume o que ele produziu de melhor nessa área. Ali podemos ver que a desigualdade não é apenas uma questão de resultados finalísticos mas de resultados abrangentes, incluindo a desigualdade nos processos que geram as desigualdades de resultados. Qual a maior crítica de Sen a escola austríaca? FM: O Sen praticamente não interage com os austriacos. Tive a oportunidade de ter aulas com o Sen e o privilegio de interagir muito com ele durante os anos que coincidimos em Cambridge, no Reino Unido. Uma vez perguntei a ele o que ele achava de determinado autor e até hoje lembro da resposta que ele me deu: "nunca li, pois nunca me pareceu interessante" e já passou para o próximo ponto. O Sen nunca foi de perder tempo com coisas que ele não achasse interessantes. Não sei o que ele teria respondido a sua pergunta, mas se tivesse que chutar diria que ele nunca viu na escola austríaca algo 'muito interessante' e por isso não encontramos nos seus trabalhos nenhuma referencia que seja digna de lembrança a eles. Na sua visão como a obra de Sen pode nos ajudar esse momento de crise humanitária e econômica, bem como ela pode auxiliar o planejar ou refletir o pós-crise? FM: Acho que a preocupação do Sen com as injustiças é um ponto fundamental. Essa crise da pandemia não é uma crise per se, mas uma crise causada pelas injustiças que ela acarreta e escancara de forma muito vivida. Aquilo que estava debaixo do tapete sai a tona. Acho que olhar para as injustiças seria a primeira contribuição evidente do trabalho de Sen. A segunda seria o uso da abordagem das capacitações para medir essas injustiças não no espaço dos recursos mas no espaço da privação de funcionamentos e capacitações (falta de liberdades) pelas quais as pessoas estão passando. O Sen, durante a sua carreira, olhou muito para a questão da fome, da pobreza, da desigualdade, da discriminação de gênero, dos hiatos educacionais, da falta de responsabilidade dos estados. Todo esse aparato conceitual e pratico é muito importante para o momento no qual estamos vivendo. Em particular, não apenas entender as injustiças profundas entranhadas na nossa sociedade, mas agir positivamente para corrigi-las. Indique um livro de ficção e um sobre sua área de atuação; FM: Como ficção, gosto muito do Grande Sertão Veredas, do Guimarães Rosa. Acho genial o que ele fala do bem e do mal, 'que vivem dentro da gente' e de como as estruturas sociais nas quais vivemos podem influir mas não decidir sobre quem somos. Na minha área de atuação, teria vários. Mas vou citar um que mudou a minha vida, o 'Desenvolvimento como Liberdade' do Amartya Sen, de 1999. Não é o melhor livro dele, mas é o livro que me abriu aos olhos para a economia de um jeito que nenhum outro tinha feito antes. Indique um filme ou uma série!!!! FM: Estou terminando de escrever um livro, com o título provisório "Amor, Ordem e Progresso". Venho estudando o 'amor' ha alguns anos, não do ponto de vista romântico, mas social. Para escrever esse livro, revi vários filmes que tinha visto ha muito tempo. Um deles, que me marcou muito, é o que eu gostaria de deixar registrado aqui: Cidadao Kane, de Orson Wells. Na minha interpretação esse filme não trata apenas do capitalismo desenfreado, do consumismo, dos grandes impérios de mídia que marcaram o seculo passado, das fake-news e da politica, mas do amor. Acompanha bem a leitura do Desenvolvimento como Liberdade do Amartya Sen.


*CV Professor Flavio Comim: https://www.iqs.edu/en/dr-flavio-comim

348 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page